“Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário, o que é necessário é criar” Fernando Pessoa.
Li esta frase de Fernando Pessoa em Obra Poética, na tarde de vinte e oito de maio de 2006, na livraria do Porto, em Portugal, com a frenética curiosidade dos meu olhos, folheando aquele imenso livro recém-lançado.
Não que não tivesse lido ou conhecido esse incrível escritor de outras leituras, mas ver tantos poemas ali reunidos foi um festa, e deter-me nesse foi uma surpresa, para quem caminhava pelas ruas, com a intensa energia do sol de verão, por aquelas ruas que talvez ele mesmo tenha vivido e caminhado, escrito seus poemas em bares e vilas, e que num dia de profunda inspiração, escreveu numa página de seu caderno :-
“Viver não é necessário, o que é necessário é criar”.
E neste vaivém entre as páginas e as linhas do poema, que vários poemas são, formando uma consistência letárgica, fui surpreendida pelos ruídos do tráfego, e das andorinhas, ou melhor várias andorinhas, centenas delas, nesta tarde de verão, Andorinhas que vociferavam pelas ruas, ingovernáveis, rebeldes, formando uma via láctea diante dos meus olhos e ouvidos. E, continuei me arrastando pelos meandros mentais desta frase, desses momentos que duram um instante como a cor do pôr-do-sol no leito do mar. Também estava com vontade de ver o mar.
Esse gosto sibilante e fluído de um frase que te cerca em profundidade, e continuava diante dos meus olhos: - viver não é necessário, o que é necessário é criar”.
Poeira de ar empurrando os subúrbios dos ventos e memórias que afloram sem saber de onde, desassossegos e inquietudes – cercando meus pensamentos, eu me pergunto: “o que é criar”? Criar com essa disposição de poema que fere a alma. Revelar interioridade. Criar, o que é afinal a criação?
Sinto que posso ficar uma semana sentada e pensando nesta frase, e não chegar ao seu entendimento, sua profundidade e alcance.
Como ver que somos representações de várias faces que se ocultam – sombras fluídas, de ventos e linhas, e de linhas aos ventos fui saboreando essa sensação, sem ter respostas, sem ter definições. Sentia partir tais pensamentos, vinham outros e se completavam, entre espaços enevoados destas sensações transfiguradas em novo sentir.
Somos ondas respirando ventos, no dissolver e no relaxar, fazendo tremer a epiderme na tensão da posse, e com a minha indignação, carreguei desalinhada minhas dúvidas como um pianista que leva seus sons antes de sentar-se ao piano.
E hoje, a frase voltou, inteira em minha mente, enfronhada ainda em meus lençóis , sempre com a dúvida se a arte têm raízes com o vivido, será porque se altera e se faz sempre noutras dimensões, criando outro existir. A arte, esse discurso solitário, com seus espectros e angústias, sempre transformando, sempre indagando. Ela que não é o real, mas apenas a transformação do vivido, a invenção extrema da introspecção, da exploração do próprio ser, uma testemunha sobre os desejos e sofrimentos do humano, alguma coisa que toca nesse indecifrável mistério que é a vida.