Eu e a minha azia, vivíamos em paz e concórdia; mesmo assim, essa pequena saliência insultuosa ( ver Hérnia de hiato) produzida no esôfago, estava presente, fazia-se sentir todos os dias. Além disso, não me dava sossego com o que eu ingeria. Era manhosa, sedutora das minhas vísceras, produzindo esse líquido ácido, impedindo de eu ir adiante nos meus sabores. Ajeitava-se no seu espaço, dava aos ombros algumas vezes, e assim remexia-se, mas deixava- me em paz.
Estávamos em cumplicidade solitária já há alguns anos, até o dia ( 3.12.09) de uma “endoscopia”, numa fria sala de exames; farejaram em mim essa conhecida, revelando sua face. Naquela altura, sentia dores e, às vezes, não me deixava dormir.
Percebi, que para o médico, aquela natureza monolítica de uma amizade, não deveria existir. A sua graduação no tema foi a palavra final, na decisão de extrair, subjugar, extirpar, regularizar, e enfim: - operar em laparoscopia.
Quando me desfiz da sensação de ser um peso, deus me livre quase morta sobre a maca, e me transformar novamente num ser humano às voltas com a altura mais favorável do travesseiro, e mesmo separada pelo abismo de uma profunda incompatibilidade metafísica, parada e silenciosa em meu estado catatônico, estava feliz. Percebi que a chuva desta época do ano, continuava intensa e no fervor do verão. Tudo escorrendo pelas vidraças, transmitindo a sensação de veludo macio no sono infindável desta minha felicidade, misturada a dose letal de anestesia para um corpo que cai enfim ao seu leito,e se despede de uma velha amizade.
-Então, amanhã você está de alta.
Foi o som, que o meu especialista graduado, com olhos filosóficos espalhou pelo quarto.
Apenas olhei para ele e dormi novamente, como um anjo.
Os rastros desta “amiga” ficaram na minha pele, cinco furos distribuídos e eqüidistantes na dimensão corpórea, parecendo beliscões bem dados nas minhas vísceras retorcidas, e concordo em dizer que ao ser extirpada, regulada, redimensionada, não deixou atrás de si nenhum jardim das delícias, mas uma ruptura trágica entre a existência e a dor, que deu início a uma longa e fatal discussão do meu novo ser, reiterando à lei da entropia, do como tudo o que existe no espaço- tempo do corpo, acabam por fazer parte dele.
E, assim vivi, nessa mínima hiatal, uma separação entre a consciência e o corpo em sua futura transformação, na lição de experimentar o inevitável: - o de ter que "desacelerar" (mesmo) para ver a importância do tempo em cada "miléssimo" dos seus segundos.
Hérnia de hiato: profusão do estômago através do orifício pelo qual o esôfago atravessa o diafragma para penetrar na cavidade abdominal. Existi um músculo que se abre para permitir a passagem dos alimentos para o estômago e, então se fecha para impedir que os ácidos estomacais subam para o esôfago. Qualquer alteração pode provocar o refluxo gastroesofágico e, conseqüentemente, azia, o sintoma mais comum da hérnia de hiato.
JU Gioli