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24 março 2009

A arte do olhar



A Complicada arte de ver por Rubem Alves



Ela entrou, deitou-se no divã e disse: 'Acho que estou ficando louca'. Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. 'Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões - é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto.'
Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as 'Odes Elementales', de Pablo Neruda. Procurei a 'Ode à Cebola' e lhe disse: 'Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver'.

Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.

William Blake sabia disso e afirmou: 'A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê'. Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.

Adélia Prado disse: 'Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra'. Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.
Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem.
'Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios', escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada 'satori', a abertura do 'terceiro olho'. Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: 'Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram'. Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, 'seus olhos se abriram'. Vinicius de Moraes adota o mesmo mote em 'Operário em Construção': 'De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa - garrafa, prato, facão - era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção'.
A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas - e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.

Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: 'A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas'.
Por isso - porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver - eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar 'olhos vagabundos'...

O texto acima foi extraído da seção 'Sinapse', jornal 'Folha de S.Paulo', versão on line, publicado em 26/10/2004

8 comentários:

Silvares disse...

Esse texto deixou-me arrepiado. É que, sendo eu professor de muitas crianças e adolescentes, tenho precisamente essa ambição: mostrar-lhes o poder que todos têm dentro de si e a maravilha que é olhar o mundo com os olhos bem abertos e enxutos.
Um post muito belo e cheio de profundidade... poética.
:-)

Anônimo disse...

Texto muito verdadeiro. Não basta olhar para ver, é preciso abrir a mente para sentir além da parte "funcional" do objeto. E para isto é necessário abandonar as idéias pré-concebidas e deixar a mente vagar livremente como a das crianças...
Muito lindo, Ju!
Um beijão.

Anônimo disse...

Maravilha, Ju!
"Olhos de ver". Vivemos uma época em que malha-se muito o corpo. Tudo é muito prático, pronto, previamente definido. Num mundo tão digital, já é mais do que hora de dedicar mais atenção à mente e suas inúmeras capacidades. O Rubem foi ao ponto. Perfeito!

Bjs e inté!

PS: No meu post desta semana, lá no Fundo, tenho um meme para o qual você é uma das indicações.

http://saia-justa-georgia.blogspot.com/ disse...

Ju, fiquei arrepiada e emocionada com este texto. Estou lendo "O desejo de ensinar e a Arte de Aprender de Rubem Alves. E chego aqui, o que eu encontro???

Eu muitas das vezes estou como este texto: Os olhos se abrindo para nao ver mais a pedra que sempre esteve ali...confesso que tenho aprendido muito com a Viviane, pois ela já trouxe olhos voltados para a arte. Onde ela vê coisas que eu nunca vi. Por isso, ando tb assustada porque nao sei direito como caminhá-la neste mundo até entao desconhecido para mim: O mundo das artes.

Um grande beijo

Anônimo disse...

Para colaborar de alguma forma deixarei a Ode à Cebola de Pablo Neruda, citado no texto de Rubem Alves:

Ode à cebola:

Cebola
Luminosa redoma
pétala a pétala
cresceu a tua formosura
escamas de cristal te acrescentaram
e no segredo da terra escura
se foi arredondando o teu ventre de orvalho.
Sob a terra
foi o milagre
e quando apareceu
o teu rude caule verde
e nasceram as tuas folhas como espadas na horta,
a terra acumulou o seu poderio
mostrando a tua nua transparência,
e como em Afrodite o mar remoto
duplicou a magnólia
levantando os seus seios,
a terra
assim te fez
cebola
clara como um planeta
a reluzir,
constelação constante,
redonda rosa de água,
sobre
a mesa
das gentes pobres.

Generosa
desfazes
o teu globo de frescura
na consumação
fervente da frigideira
e os estilhaços de cristal
no calor inflamado do azeite
transformam-se em frisadas plumas de ouro.

Também recordarei como fecunda
a tua influência, o amor, na salada
e parece que o céu contribui
dando-te fina forma de granizo
a celebrar a tua claridade picada
sobre os hemisférios de um tomate.
mas ao alcance
das mãos do povo
regada com azeite
polvilhada
com um pouco de sal,
matas a fome
do jornaleiro no seu duro caminho.
estrela dos pobres,
fada madrinha
envolvida em delicado
papel, sais do chão
eterna, intacta, pura
como semente de um astro
e ao cortar-te
a faca na cozinha
sobe a única
lágrima sem pena.
Fizeste-nos chorar sem nos afligir.

Eu tudo o que existe celebrei, cebola
Mas para mim és
mais formosa que uma ave
de penas radiosas
és para os meus olhos
globo celeste, taça de platina
baile imóvel
de nívea anémona

e vive a fragância da Terra
na tua natureza cristalina.

Ví Leardi disse...

...partejar 'olhos vagabundos'...
Simplesmente de arrepiar...minha amiga!!
Brava!!! beijos muitos

Mírian Mondon disse...

"O poeta ensinta a ver" tão verdadeiro, tão belo...

Sempre uma alegria passar por aqui!

A proposito, pela primeira vez gosto de um blog com música :)

Abraço

Adelino disse...

Ju, vou fazer uma comparação até que um pouco grosseira: o "ver" é um mistério. Como diz o texto, uma árvore é vista de modo diferente por um poeta e um ser comum. Da mesma forma, numa partida de futebol, um analista acha que determinado jogador teve uma atuação excelente e outro acha o contrário. Ou seja, não viram o jogo com os mesmos olhos.
Um grande abraço.

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